O barco
Dois turistas, que
estavam acampados na beira de uma lagoa, decidiram atravessar o lago para fazer
uma visita ao boteco do lado oposto. Ficaram por lá boa parte da noite tomando
umas e mais umas. Finalmente o bar fechou e eles foram obrigados a voltar para
casa. Cambaleando, demoraram a encontrar o seu barquinho e, mais ainda, para
sentarem-se nele. Pegaram nos remos e começaram a remar com força. Depois de
duas horas, perceberam que ainda não tinham chegado.
- Não deveríamos ter
alcançado o outro lado? - perguntou um deles ao amigo.
- Certamente -
respondeu o segundo - mas talvez não remamos com a devida energia. Duplicaram
os esforços por mais uma hora. Estavam exaustos, mas somente quando o dia
começou a clarear perceberam que não tinham saído do lugar. Tinham esquecido de
desamarrar a corda que segurava o barquinho ao trapiche.
Sem dúvida uma lei é
como um caminho bem traçado pelo qual é possível avançar seguros. No entanto
ela pode transformar-se numa corrente ou numa "corda" que nos prende
e que nos impede de sair do lugar. Jesus, no evangelho deste domingo, diz-nos
que não veio para abolir a Lei antiga, mas para dar sentido e pleno cumprimento
a ela. Com efeito, uma lei mal entendida ou cumprida ao pé da letra pode nos
deixar com a consciência tranquila, mas pode também nos afastar do seu próprio
objetivo. Pelos próprios evangelhos aprendemos que Jesus muitas vezes agiu com
extrema liberdade a respeito da lei e, por isso, foi criticado e condenado.
Para ele, tinha algo de mais precioso que a mera observância de uma norma: a
vida e o amor ao irmão sofredor ou pecador que fosse. O Deus Pai que Jesus veio
nos revelar não era nem um fiscal e nem um juiz. Não era um Deus para poucos
escolhidos, perfeitos e imaculados. Agora sabemos que Ele é, em primeiríssimo
lugar, amor misericordioso, feliz por perdoar e alegre por acolher os caídos à
beira das estradas da vida. O Deus, Pai de Jesus e Pai nosso, é um Deus consolador,
bondoso e compassivo. Para entender isso precisamos nos libertar das amarras de
uma lei fria, sem coração, uma lei que mata em lugar de dar vida. À lei antiga
faltava mesmo o cumprimento que Jesus trouxe e que resume a própria lei e os
profetas: o novo mandamento do amor.
Somente assim
entendemos que não basta "não matar" o irmão. Jesus nos pede de
respeitá-lo, de não cultivar raiva ou rancor. Com efeito, o ódio faz que
"matemos" o irmão com o pensamento, que o condenemos com o nosso
julgamento, que o apaguemos de nossa vida com o desprezo. Para nós é como se
não existisse mais, é como se estivesse morto.
Também não devemos
praticar um culto somente exterior. Não adianta apresentar uma oferenda bonita
a Deus, se o nosso coração está cheio de pensamentos e projetos de vingança.
Para que a nossa oferta seja agradável a Deus precisamos ter o coração em paz,
precisamos estar reconciliados com os irmãos. Separar as práticas religiosas da
nossa vida e dos nossos pensamentos significa esvaziar o culto, e deixar Deus
fora da realidade torna inútil a fé. A nossa oração ganha o coração de Deus
quando sabemos perdoar e aceitamos ser perdoados.
A fidelidade
matrimonial também não pode ser mera fachada. Parar garantir isso precisa
vigiar até sobre os próprios olhares e desejos. O amor conjugal deve ser
alimentado todo dia pela honestidade e pela confiança recíproca. Quando não é
mais motivado e mantido pelo amor, o matrimônio se torna realmente uma prisão
insuportável e a convivência uma tortura. Se queremos sustentar a alegria da
família, precisamos ter a coragem de cortar relações duvidosas, vícios
perigosos e interesses escusos. É o tesouro do amor que sempre deve ser
defendido.
A verdade deve
resplandecer por si mesma, sem juramentos e inúteis palavreados. Para entrar no
reino do céus, é necessário algo mais que a obediência a uma lei: é necessária
a criatividade do amor. Muitas "cordas" ainda devem ser cortadas para
sair do impasse do nosso comodismo disfarçado de obediência.
Dom Pedro José Conti
Colunista do Portal Ecclesia.